Tecnologia e cuidado: feitos um para o outro

A pandemia acelerou o desenvolvimento da teleassistência de enfermagem, inserindo definitivamente o uso das novas tecnologias de comunicação no dia a dia dos profissionais

Em 26 de março de 2020, logo após a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar a pandemia da Covid-19, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) publicou a Resolução nº 634/2020, regulamentando a teleconsulta de enfermagem. A publicação foi um marco para essa área, impulsionando uma forma de se fazer enfermagem que vinha sendo timidamente praticada, mas que ganhou força a partir da necessidade de isolamento social e da diminuição das atividades presenciais.

A enfermeira Rita Simone Lopes Moreira, professora do Departamento de Enfermagem Clínica e Cirúrgica da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), trabalha com teleconsultas no Hospital São Paulo há cerca de três anos, com pacientes da cardiologia. Ela é uma das testemunhas do impacto que a pandemia teve nessa forma de atuação do enfermeiro: “Já trabalhávamos com aconselhamento telefônico aos pacientes. A gente fazia a teleconsulta de uma forma não-sistemática e a pandemia trouxe a necessidade de implantar isso. Como não havia alternativa, pois não podíamos deixar as pessoas sem cuidado”, conta.

Com a pandemia, Simone percebeu na prática a viabilidade da teleconsulta

Além da consulta por telefone, Simone e sua equipe trabalham com videochamadas. O foco da assistência remota é o acompanhamento do paciente entre as consultas presenciais, portanto trata-se de uma ferramenta para potencializar e tornar ainda mais efetivo o trabalho presencial da equipe multidisciplinar de saúde. “Entendemos que hoje o enfermeiro é um participante fundamental nesse atendimento remoto porque ele pode não só suprir as dúvidas do paciente, como também fazer um processo de educação em saúde mais eficiente. Nas unidades públicas, isso é importante especialmente por conta do grande espaçamento entre as consultas presenciais. Se o paciente sabe que daqui a dez dias ele vai receber um telefonema, a assistência se torna muito mais segura”, afirma a professora.

O contato remoto com o enfermeiro no intervalo entre as idas presenciais ao hospital trouxe benefícios comprováveis aos pacientes de Simone. “Tivemos êxito em diminuir a reinternação e conseguimos trazer para a unidade hospitalar os pacientes que apresentaram complicações. A teleconsulta não substitui o atendimento presencial, mas possibilita a aproximação entre o profissional e o paciente, para que este tenha uma supervisão um pouco mais próxima, além de possibilitar que os processos de educação em saúde, o automonitoramento e o autogerenciamento do paciente sejam mais eficientes e eficazes do que no processo recordatório. Tem sido um ganho para a prática de enfermagem”.

Uma pesquisa feita com aqueles que receberam assistência de enfermagem remota no intervalo entre consultas presenciais trouxe resultados muito positivos: “Quando perguntamos se o aconselhamento remoto ajudou a relembrar a orientação da alta hospitalar, tivemos 100% de concordância. Quando perguntamos se o contato telefônico foi capaz de esclarecer dúvidas após a alta, 97% disseram que sim. Já no quesito satisfação com o contato remoto, 62% afirmaram estar muito satisfeitos e 22%, satisfeitos”, comemora Simone.

Próximos passos da enfermagem remota

Para a enfermeira e professora Raquel Acciarito Motta, mestre em enfermagem na área de educação digital, um dos desafios atuais é o desenvolvimento de uma assistência remota em saúde que seja própria da enfermagem e que seja independente dos paradigmas da telemedicina. “Algo que discuto bastante é o quanto a enfermagem fica alicerçada nas questões da medicina, porque a telemedicina já se encontra bastante fortalecida pela ação médica. Já a enfermagem ainda está muito longe de ter a característica que poderia ter na área remota”, diz.

Raquel espera ver o uso de novas tecnologias cada vez mais inserido na grade curricular dos cursos de enfermagem

Um dos caminhos que ela indica para o desenvolvimento da teleassistência em enfermagem como um ramo do conhecimento é a inserção desse tema na grade curricular da graduação. “A utilização das novas tecnologias precisa estar contida na formação do enfermeiro, assim como já está contida na formação médica. Não temos uma disciplina que envolva a assistência remota em saúde. Para isso, o enfermeiro precisa querer conhecer a teleconsulta em enfermagem, pois não é qualquer um que pode realizá-la, pois temos legislações para isso”, esclarece. Essas legislações são a Lei do Exercício Profissional de Enfermagem (7.498/1986) e seu Decreto Regulamentador (94.406/1987), bem como a Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018) e a Resolução Cofen nº 634/2020.

Raquel cita que idealmente há a necessidade de se ter uma plataforma com regulação e controle para a realização da teleconsulta. Isso asseguraria o sigilo da assistência por meio de uma conexão segura com criptografia dos dados. A assistência remota também deveria ser pensada de forma a contemplar a Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD) e toda a regulamentação do exercício profissional de enfermagem.

Entretanto, já existem no Brasil start ups que estão criando esses sistemas para teleassistência: “São modelos criados para agregar dados do paciente, informações de saúde dele e devolutivas de forma remota, em ambiente controlado. Ambiente controlado é um ambiente logado, com controle de acesso do usuário e senha pessoal e intransferível. Se eu tenho um grupo de colaboradores na minha empresa, eu também os agrego em cada área de especialidade: nutricionista, fisioterapeuta e assim por diante. Por meio de uma plataforma, eu também acesso o prontuário do paciente de forma remota e controlada, sabendo quem o atendeu e quantas horas atendeu. Preciso desses dados até para poder monetizar adequadamente a consulta. Isso não é algo que se constrói do dia para a noite. Temos que ter preparo da equipe e tecnologia”, conclui Raquel.

Cofen inicia normatização e regulamentação da enfermagem na saúde digital

Em 26 de março de 2020, o plenário do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) aprovou a Resolução Cofen nº 634/2020. O documento autorizou e normatizou a teleconsulta de enfermagem como forma de combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus.

A resolução prevê que o enfermeiro pode se utilizar dos meios de tecnologia de informação e comunicação para a realização de consultas e a provisão de esclarecimentos, encaminhamentos e orientações, com recursos audiovisuais e dados que permitam o intercâmbio à distância entre o enfermeiro e o paciente de forma simultânea ou de forma assíncrona.

No fim de agosto, o órgão abriu uma consulta pública visando a criação de uma Resolução para a atuação da enfermagem na Saúde Digital. As propostas contidas na consulta pública visavam a normatização e a autorização da atuação dos profissionais no teleatendimento, teleconsulta, telemonitoramento e teleconsultoria.

A proposta é a criação de uma normativa que preveja a consulta mediada por Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) de forma sincrônica, com base na Sistematização da Assistência de Enfermagem (SAE), utilizando plataforma segura. A consulta poderá gerar a prescrição de medicamentos, solicitação de exames e encaminhamentos, desde que previstos em protocolos, diretrizes clínicas e terapêuticas, ou outras normativas técnicas estabelecidas no âmbito do SUS, bem como na saúde suplementar e privada.

Fonte: EnfermagemRevista – Edição nº 29