Especial Povos Indígenas: De saúde básica à prevenção de doenças, enfermeiras indígenas falam sobre os desafios para garantia de direitos

Ao longo dos últimos anos, a saúde indígena tem sido tema de importantes levantamentos e estudos sistemáticos no campo das Ciências Sociais. Nesse conjunto de reflexões, figuram os temas das epidemias, iniciativas de assistência sanitária, especificidades socioculturais, das carências nutricionais, da demografia e da criação da política de saúde indígena brasileira.

Essa população enfrenta inúmeras tensões no âmbito da saúde, desde os primeiros contatos com os não indígenas, ainda no século 16, passando pelas epidemias de gripe e sarampo, no século 20, mais recentemente com a gripe H1N1, em 2009, até a pandemia de Covid-19, em 2020. Cada uma dessas epidemias e/ou crises sanitárias impactaram de diferentes formas os grupos indígenas atingidos, seja social, econômica ou demograficamente, sendo, portanto, importante um olhar para as especificidades de cada região e de cada povo na compreensão e no enfrentamento de questões de saúde pública entre os povos indígenas.

Em alusão ao Dia dos Povos Indígenas, comemorado nesta quarta-feira (19), a Agência Aids traz um especial sobre a saúde indígena. Conversamos com duas especialistas no tema: a enfermeira Vanessa Taís Barros, mulher indígena do povo Truká de Pernambuco e ativista pelos direitos da saúde da população indígena. Atualmente ela mora no Mato Grosso e atua no distrito sanitário de DSEI-Xingu; e a enfermeira Zuleica Thiago, mulher indígena do povo Terena, do Mato Grosso do Sul, mestre em saúde da família e estudante de medicina.

O que as duas têm em comum? Ambas decidiram atuar na área da saúde para ajudar suas aldeias no acesso à saúde pública.

Vanessa Taís disse que sempre morou na cidade e o seu objetivo era estudar para levar melhoria ao seu povo. “Sai de Pernambuco e fui para Bahia estudar, procurei levar o conhecimento tradicional, juntamente com a medicina do não indígena. Trabalhei com a questão da PrEP e da PEP, do HIV/aids e participei de vários programas voltados para a área da saúde.”

Já Zuleica contou que desde a infância vem se envolvendo com as questões relacionadas à saúde das famílias indígenas, principalmente com mulheres e crianças. “Estudei a vida inteira na aldeia, fiz enfermagem e me identifico como uma defensora da medicina indígena, acredito no uso de plantas e raízes envolvendo a saúde e a espiritualidade.”

Vanessa faz parte do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xingu, que está localizado no município de Canarana e se estende por todo o Parque Nacional do Xingu, no estado de Mato Grosso. E Zuleica pertence à etnia Terena, povo de língua Aruák. Eles vivem atualmente em um território descontínuo, fragmentado em pequenas “ilhas” cercadas por fazendas e espalhadas por sete municípios sul-matogrossenses: Miranda, Aquidauana, Anastácio, Dois Irmãos do Buriti, Sidrolândia, Nioaque e Rochedo. Também há famílias terena vivendo em Porto Murtinho (na Terra Indígena Kadiweu), Dourados (TI Guarani) e no estado de São Paulo (TI Araribá).

Políticas públicas

Desde 2002, existe no Brasil a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, que nasceu com o objetivo garantir a atenção integral e diferenciada a saúde, reconhecendo a eficácia das medicinas indígenas e o direito dos povos indígenas as suas culturas e recomenda aos serviços do SUS atuarem de forma articulada aos sistemas tradicionais indígenas de saúde.

A enfermeira Zuleica citou a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) como um marco do acesso à saúde. “Essa secretaria é um subsistema do SUS, mas a questão financeira é diferente, os recursos são destinados diretamente para a saúde indígena. A Sesai é responsável pela atenção primária que é o primeiro acesso do indígena na aldeia”, pontuou.

Vanessa reconhece que a política avançou, mas há muito a melhorar, principalmente sobre conhecimentos e deveres que os municípios precisam realizar com a população. “Eles acreditam que o fato de existir uma secretaria voltada para saúde indígena é dever apenas da Sesai prestar atendimento, esquecem que a população indígena é munícipe e conta no censo do IBGE. Outro ponto é a questão do preconceito e estigma. Muitas vezes somos encaminhados para o município ou para o estado e somos maltratados, falam que não vão nos atender, para procurarmos a Sesai, encontramos muitas barreiras de acesso, nesse sentido.”

Zuleica, que acompanha as aldeias no Mato Grosso do Sul, reforça: “O indígena é munícipe e precisa ser atendido no laboratório e pelos especialistas, mas muitas vezes esse acesso é negado, tem pessoas esperando cardiologista há meses. É preciso ter um apoio maior do município e do estado, os serviços não chegam totalmente para o paciente indígena, o que está no papel é diferente do que realmente acontece na questão de infraestrutura e dos medicamentos, se tem uma política e essa política não cumpre sua função, não tem como atuar na questão da saúde indígena”, enfatizou.

Acesso nem sempre é uma realidade

Na avaliação de Vanessa e Zuleica, é possível avançar e ampliar o acesso à saúde, mas é preciso vontade política. “Os hospitais precisam estar abertos e dispostos para receber a nossa população, é preciso ainda existir um esforço para reconhecer a realidade e as responsabilidades das etnias que fazem parte do município ou do estado, essa questão é essencial para conseguirmos prestar uma assistência de qualidade”, observou Vanessa.

Na opinião de Zuleica, “o aumento do aporte financeira e dos profissionais de saúde indígena já fariam uma grande diferença, é preciso assegurar a atuação desses profissionais em suas comunidades”, enfatizou. “Nas comunidades que tem agentes e postos de saúde, o indígena que está com problemas procura o profissional e agenda o serviço com o enfermeiro ou médico, é feito o acompanhamento daqueles com alguma patologia, como hipertensão, diabetes”, completou.

Comunicação

Questionada sobre como é feita a comunicação sobre saúde com as aldeias, Vanessa explicou nem sempre é fácil, “principalmente quando temos que usar a regulamentação por questões culturais. Existem etnias que não aceitam ser retiradas do território para ser internado em outro lugar, então vivemos um impasse bem complicado. Por outro lado, temos uma equipe com agentes indígenas que passam as informações na língua e constroem todo o material de comunicação. É uma construção conjunta, criamos cartilhas com figuras, porque os mais antigos e algumas mulheres não sabem ler”, contou.

Zuleica informou que “a maioria dos agentes de saúde e técnicos de enfermagem são da aldeia e já falam os dialetos, o que é ótimo para a questão da comunicação com os indígenas. Houve um tempo que existia projetos de cartilha, mas isso foi há mais de 10 anos” desabafou.

Saúde sexual

Sobre as questões que envolvem a temática saúde sexual de reprodutiva, Vanessa disse que o tema é debatido nas aldeias. “Fazemos rodas de conversa com as mulheres, temos a referência de um profissional do sexo masculino para conversar com os homens, trabalhamos com uma equipe mista para conseguir acessar toda a comunidade e sanar as dúvidas, falamos sobre a saúde reprodutiva também com as crianças”, afirmou.

Na etnia Terena, Zuleica relatou que os mais jovens lidam melhor com essa pauta. “Encontramos uma certa facilidade com a população mais jovem, eles são mais acessíveis do que os pais. Os mais velhos às vezes não aceitam falar sobre esse tema por conta do preconceito e da religião, mas não há tantos empecilhos como antes”, assegurou.

Segundo Vanessa, no dia a dia, a comunidade é bem solicita para realizar os testes rápidos de HIV e outras ISTs. “Fazemos as buscas na comunidade, realizamos a testagem e seguimos com toda a questão do tratamento e acompanhamento fora do território. Explicamos como é o tratamento e as forma de prevenção, fazemos prevenção dentro da família e da comunidade, além de realizar o rastreio para as ISTs ou doenças de notificação obrigatória.”

Zuleica falou que em Terena a comunidade também aceita realizar os testes. “Temos bastante facilidade em ofertar os insumos de prevenção. Os testes são bem acessíveis. Inclusive, a questão do sigilo é garantida, como prevê a lei”.

As duas disseram que o acesso à medicação também acontece dentro das aldeias. “O acesso aos medicamentos é via município, sinalizamos e notificamos os órgãos responsáveis e toda medicação e acompanhamento é fornecida por eles, esse acesso e a entrega da medicação não demora”, assegurou Vanessa. “Os municípios têm um setor de dispensação, é algo bem ágil, completou Zuleica”.

Neste Dia Nacional da Luta dos Povos Indígenas, as duas vão se juntar aos seus povos na luta por direitos. Às novas gerações, Vanessa e Zuleica pedem que continuem na luta pelo reconhecimento e respeito, e preservem aquilo conquistado pelos mais antigos.

Fonte: Agência de Notícias da AIDS

Saiba mais: