Entrevista exclusiva com Dra. Betânia Santos

Com uma vasta atuação na assistência e no ensino em enfermagem, a enfermeira paraibana Betânia Maria dos Santos assumiu a presidência do Cofen em meio à pandemia da Covid-19 e da luta histórica pelo piso salarial da categoria. Tendo a busca constante pelo conhecimento como um de seus pilares, Betânia vem sendo reconhecida pelo espírito aguerrido e pelo incentivo da participação feminina e política da enfermagem brasileira em suas lutas cotidianas. EnfermagemRevista conversou com ela e traz a seguir a íntegra desta entrevista.

Dra. Betânia Maria dos Santos, presidente do Coren-SP

1 – Quais as situações que mais marcaram sua carreira na enfermagem?

R: Ao falar dos momentos marcantes na minha trajetória dentro da Enfermagem, não poderia deixar de falar do início. Comecei a minha carreira como enfermeira no ano de 1991 trabalhando na UTI e na UTI móvel. Neste mesmo período, atuava também na área de urgência e emergência do Hospital Municipal de João Pessoa.

Nesta época ainda não existia o SAMU, o que tínhamos era somente a UTI móvel. Desta forma, meu trabalho era assistir ao paciente durante transferências de hospitais e realização de exames em clínicas. O que mais me marcou neste período foi ter participado da organização de montagem desse transporte (UTI Móvel) na cidade de João Pessoa, bem como do processo de trabalho e de ter realizado vários atendimentos bem-sucedidos.

Foi um período desafiador e de muito aprendizado, pois não havia o mesmo aparato que os profissionais socorristas possuem hoje. Pude adquirir conhecimentos com a evolução da história da emergência e vivenciar o trabalho em um ambiente antes da existência do SAMU.

Também vivenciei vários momentos marcantes desta época, realizando primeiros socorros em muitos ambientes pré-hospitalares, com a responsabilidade de profissional e tendo que improvisar o atendimento para que fosse realizado da forma mais adequada possível. Como não existia transporte, constantemente nos deparávamos com situações graves, e precisávamos agir da forma mais sensata possível para preservar a vida do paciente.

Outro ponto memorável, sem dúvidas, foi a minha eleição para a presidência do Cofen. Junto ao plenário, temos buscado dar continuidade às importantes ações que já vinham sendo tomadas pelas gestões anteriores e assumimos compromissos com a Enfermagem brasileira neste momento atípico no qual a pandemia passou a exigir diversos ajustes para assegurar a fiscalização e a segurança do exercício profissional da nossa profissão. Vale ressaltar que vários projetos inovadores estão em execução e em breve serão implementados.

Ainda, não poderia deixar de definir como um momento marcante as minhas qualificações profissionais. Realizei uma pós-graduação em Investigação de Cuidados na Universidade de Extremadura, na Espanha, um mestrado em Saúde Pública pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e um doutorado em Medicina e Saúde pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Considero a busca pelo conhecimento um elemento fundamental para o desenvolvimento profissional. No Cofen, nosso plenário tem abraçado este objetivo de ofertar aprimoramento e qualificação à categoria. Entre as ações, destaco a expansão do já bem-sucedido Programa de Mestrado Profissional Cofen-Capes, que passou a acolher alunos das mais variadas regiões do Brasil. Já está em sua fase final do último edital, está formando cerca de 500 enfermeiros mestres altamente especializados na prática profissional.

2 – Como sua trajetória profissional caminhou da assistência e das salas de aula para integrante do Coren-PB e do Cofen?

R: Sou a quinta filha de seis irmãos em uma família fundada por um pai carteiro e uma mãe dona de casa, e desde a infância, sentia uma sede de conhecimento e uma vocação para o cuidado. Posso dizer que desde que consigo me lembrar, o estudo ocupou posição de destaque na minha vida. Sempre acreditei na capacidade de transformação social da educação.

Ingressei na faculdade aos 18 anos e, ao mesmo tempo em que me educava, dava aulas de Ciências e Biologia, uma verdadeira paixão. Após a conclusão da licenciatura em Enfermagem na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no ano de 1988, segui me aprimorando na assistência e na docência.

A sintonia desses dois campos em minha vida contribuiu para minha formação e desenvolvimento, visto que a vivência prática da Enfermagem me auxiliava na hora de ministrar aulas e passar exemplos com maior propriedade. Já a minha experiência como professora me impulsionava a estudar e me qualificar cada vez mais na minha atuação.

Neste mesmo tempo, iniciei meu trabalho como professora universitária em uma faculdade local. Mais tarde, em 2004, passei a lecionar no curso técnico de Enfermagem da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), no campus situado na cidade de Cajazeiras, no sertão paraibano.

Realizei, ainda, duas Especializações em Enfermagem de Cuidados Intensivos e Enfermagem Forense, além de um mestrado em Saúde Pública, também pela UFPB.

Em 2017, fui transferida para a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atuando como docente do curso técnico de Enfermagem e também executando projetos de pesquisa e extensão que envolvem discentes da graduação em enfermagem dessa mesma universidade.

Desde a universidade, minha trajetória foi marcada pelo envolvimento nos movimentos da política estudantil. Já como enfermeira, me mantive na luta pela aprovação das reivindicações mais importantes dos nossos profissionais, como o Piso Salarial, a jornada das 30 horas e a Lei do Descanso Digno, poso salarial, cujos projetos tramitam há décadas.

A presença no front da luta pela valorização da categoria se traduziu mais tarde na minha eleição para a diretoria do Conselho Regional de Enfermagem da Paraíba (Coren-PB) por dois mandatos, entre 2012 a 2017, além de eleição para o Cofen como conselheira federal por duas gestões, de 2006 a 2012.

Para a presidência do Cofen, acredito que a minha escolha foi fruto do reconhecimento pelas contribuições prestadas ao Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem e pela trajetória profissional que percorri.

3 – Qual a importância para a enfermagem brasileira, majoritariamente feminina, de a presidência do Cofen ser ocupada por uma mulher?

R: Cerca de 85% da Enfermagem é feminina. Ter uma mulher à frente do Cofen é importante pois mostra que lugar de mulher é onde ela quiser. Podemos e devemos ocupar todos os postos que desejarmos.

Em tempos nos quais vemos diariamente direitos das mulheres serem feridos e retirados, julgo ser de extrema importância que figuras femininas continuem a alcançar cada vez mais espaços de destaque e posições de tomada de decisão.

Dados da Organização Mundial da Saúde estimam que, embora as mulheres representem 70% da força de trabalho na área da saúde no mundo, elas ocupam apenas 25% destes postos.

Com a pandemia, a Enfermagem e outras profissões da saúde ganharam destaque pelo papel fundamental que vem sendo desenvolvido neste momento em que passamos por uma crise sanitária sem precedentes. Como resultado, muitas mulheres começaram a ocupar posições de comando, quebrando estereótipos e trazendo voz e protagonismo. No entanto, a disparidade ainda existe.

Acredito que uma maior participação de mulheres na liderança das políticas globais de saúde e de resposta às emergências será traduzida em mudanças positivas, pois inevitavelmente somos grande parte do reflexo da saúde nacional e mundial. Exemplos de lideranças femininas na saúde e especialmente na Enfermagem vão impulsionar mais mulheres a ocuparem postos de tomada de decisão.

4 – Quais os momentos mais decisivos à frente do Cofen durante a pandemia da Covid-19?

 R: Com toda a certeza, a maior dificuldade foi assumir a presidência no período pandêmico, momento extremamente delicado e marcado por unidades de saúde superlotadas e pelo sofrimento físico e mental dos profissionais. Vivenciamos algumas dificuldades para realizarmos reuniões e eventos importantes devido à restrição que a pandemia ocasionou.

Ano passado, enquanto vivíamos mais uma onda intensa da covid-19, enfrentamos diversos desafios, mas seguimos atuando para atender aos Conselhos Regionais e aos profissionais buscando assegurar a qualidade da assistência. Continuamos a monitorar a situação da Covid-19 através do Comitê Gestor de Crise (CGC), órgão técnico que consolidou dados, informações e qualificou as intervenções normativas, técnicas e logísticas do Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem.

A função primordial dos conselhos profissionais é fiscalizar e regulamentar o exercício profissional. Desta forma, orientamos e consolidamos ações fiscalizatórias in loco em todas as regiões do país, possibilitando ampla cobertura de nossas atividades.

Neste mesmo momento, vivenciávamos um período de grande desinformação. Atendemos a intensa demanda da imprensa, combatendo notícias falsas, promovendo boas práticas profissionais e propondo pautas relevantes para a assistência de Enfermagem e Saúde Coletiva. Além disso, divulgamos, em tempo real, dados sobre a pandemia por meio do site “Observatório da Enfermagem”, amplamente utilizado pela imprensa, órgãos técnicos e governamentais.

5 – Como avalia a participação do sistema Cofen/Conselhos Regionais na luta pelo piso salarial da enfermagem?

R: O Sistema Cofen/Conselhos Regionais de Enfermagem realiza um papel de extrema relevância na luta pela conquista do Piso Salarial. Atuamos em uma extensa mobilização junto às lideranças políticas, buscando garantir celeridade nas aprovações do PL 2564/20 e da PEC 11/22. É preciso lembrar que muitos outros Projetos de Lei acerca do piso salarial já foram criados, mas infelizmente acabaram sendo engavetados.

Desde o início das discussões sobre o PL 2564/20, foram realizadas diversas reuniões com senadores, deputados, autoridades municipais e representantes da Presidência da República com o objetivo de unir apoio e pavimentar os caminhos na direção da implementação do Piso Salarial.

No momento em que os antigos valores do PL estavam em jogo, dialogamos com lideranças políticas do Congresso Nacional, esclarecemos a categoria sobre a situação e lançamos uma consulta pública para ouvir os profissionais.

Quando a Proposta de Emenda à Constituição foi criada pelo Senado, também estivemos presentes sensibilizando senadores e posteriormente os deputados federais para que aprovassem com agilidade a PEC 11/22. Além disso, buscamos mobilizar a sociedade realizando campanhas com abrangência nacional, que mostravam a luta da Enfermagem na pandemia e clamavam para que enfermeiros, técnicos e auxiliares pudessem ser efetivamente valorizados.

Com a suspensão da Lei 14.434/22 que institui o piso, mais uma vez não desistimos. No Cofen, protocolamos uma carta no STF defendendo a constitucionalidade da lei e ingressamos com um pedido para atuar sob o status de “amicus curiae” no processo envolvendo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7.222 apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).

O pedido foi recentemente acatado pelo Ministro Luís Roberto Barroso e nos permitirá atuar no processo por meio do fornecimento de informações, ajudando a comprovar que o nosso piso é de fato legal. O deferimento da solicitação vai possibilitar não somente ampliar a visão do Supremo Tribunal sobre o assunto, mas fazer com que a  Enfermagem esteja representada ao longo da análise da matéria.

O trabalho em prol do nosso Piso Salarial Nacional tem sido exercido arduamente por todas as lideranças dos Conselhos de Enfermagem, mas diante de todos os impasses que ainda enfrentamos, não chegou ao fim. Seguiremos trabalhando com a dedicação necessária para solucionarmos a suspensão da Lei 14.434 e para garantirmos o reconhecimento tão merecido da Enfermagem, a maior força da saúde do nosso país.

6 – Qual a importância de os profissionais de enfermagem se empoderarem politicamente?

R: É preciso que a Enfermagem brasileira compreenda que a política permeia todas as relações e esferas da nossa sociedade.  Na saúde não é diferente, já que os investimentos públicos que garantem a existência do SUS são fruto de orçamentos que são baseados em decisões políticas. Quando falamos de direitos a serem adquiridos por uma determinada categoria profissional, como é o caso da Enfermagem, o processo é o mesmo.

Qualquer demanda da profissão é aprovada mediante decisões políticas, tomadas no Congresso Nacional ou nas Assembleias Legislativas de cada estado brasileiro. Por isso, é fundamental que enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras passem a se empoderar, compreendendo as fases de tramitação para aprovação de leis e criando consciência política.

Uma vez atuante, a Enfermagem saberá como se articular, direcionar reivindicações e lutar de forma clara e objetiva pela aprovação de pautas históricas. Além de facilitar a busca pelos direitos, esta conscientização fortalecerá igualmente a autonomia na profissão.

É importante ressaltar que a nossa categoria já passa por este processo de empoderamento político. Fomos por muito tempo alijados do cenário político e de tomada de decisões. Por décadas, nos acostumamos com a ideia de que pessoas de fora da nossa área deveriam decidir sobre nossos rumos

A pandemia mostrou a essencialidade da Enfermagem para o mundo. Dentro da categoria, mostrou que devemos ser protagonistas da nossa história. Em um movimento nunca antes visto, nossos profissionais passaram a se interessar pelo que estava acontecendo nas assembleias estaduais, nas Câmara dos Deputados, no Senado e no Governo Federal, cobrando de forma expressiva a nossa tão sonhada valorização.

Nesta eleição, a categoria foi às urnas e conseguiu importantes avanços políticos no Congresso Nacional ao eleger dois deputados federais. Em alguns estados, como Pernambuco, Acre e Rio Grande do Norte, conseguiu também eleger deputados estaduais. Isto é só o começo.

7 – Quais outras lutas além do piso salarial e da superação da pandemia a enfermagem ainda precisa travar?

R: Além das lutas pela plena implementação do Piso Salarial e da superação da pandemia, é importante destacar que a Enfermagem possui diversas demandas históricas pendentes de aprovação.

Apesar de sermos a maior força da Saúde brasileira e de correspondermos a um total de  75% da mão de obra na área, nunca tivemos avanços políticos referentes à conquista de direitos. Ainda hoje, aguardamos a aprovação de projetos de lei necessários, como o PL 2295/2000, que trata da regulamentação da jornada de trabalho, uma das pautas mais urgentes da categoria.

Com a pandemia, mais do que nunca, viu-se a necessidade de regulamentação da carga horária da Enfermagem. As múltiplas jornadas trazem esgotamento físico e emocional, além de aumentarem o risco de ocorrências adversas. No entanto, embora aprovado no Senado, este projeto aguarda há anos votação na Câmara dos Deputados.

Outros projetos importantes também enfrentam morosidade em suas tramitações no Congresso Nacional, como os que regulamentam o descanso digno, a aposentadoria especial, o adequado dimensionamento e a formação continuada de nossos profissionais.

Falar de aposentadoria especial é falar de um direito pleno que deve ser assegurado à Enfermagem, pois trata-se de uma categoria da saúde que está exposta a doenças de toda natureza e trabalha sob forte pressão. O mesmo vale para o descanso digno dos profissionais, que necessitam de instalações adequadas para repouso.

Também é preciso perceber que qualidade da assistência em Enfermagem está diretamente associada ao correto dimensionamento das equipes. Os serviços de saúde apresentam, com frequência, quantitativo de pessoal de Enfermagem insuficiente para as demandas de atendimento, situação que leva à sobrecarga de trabalho e aumenta o risco de ocorrências adversas, além de gerar lentidão no atendimento.

Todas estas demandas são históricas e foram potencializadas pela pandemia. No entanto, é preciso entender que essas lutas são antigas porque estão atreladas à pouca representatividade política. É importante que a Enfermagem desenvolva ainda mais seu potencial de articulação com a classe política e a sociedade, para que compreendam que a nossa valorização é fundamental.

Além de mobilizações, precisamos e devemos ocupar cada vez mais os espaços de tomada de decisão. Sem Enfermagem não há saúde, e é necessário que toda a nossa importância seja convertida em valorização e dignidade.

8 – Como a enfermagem pode participar mais ativamente do cotidiano do sistema Cofen/Conselhos Regionais?

R: Acredito que a categoria pode ser mais ativa ao acompanhar nossas ações para compreender o que estamos fazendo em prol do reconhecimento efetivo da Enfermagem. Seja pelas nossas redes sociais, pelas ouvidorias, pelos sites dos conselhos ou pelos perfis individuais das lideranças do sistema, a Enfermagem pode interagir, dar opiniões e propor sugestões.

Penso que uma participação mais ativa da categoria no cotidiano do Sistema perpasse pelo real conhecimento das nossas atribuições. Os Conselhos de Enfermagem vão muito além da simples cobrança da anuidade.

Entre as nossas competências, fiscalizamos e normatizamos o exercício profissional, assegurando uma prática segura de Enfermagem que beneficie toda a sociedade. Somos também responsáveis pela aprovação de importantes resoluções e pareceres que contribuem para o desenvolvimento e a atualização da profissão.

Além disso, criamos projetos importantes de valorização de enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem. Mais que isso, somos a casa da nossa profissão e devemos sempre manter uma relação estreita com nossos profissionais.

Fonte: EnfermagemRevista, edição 31

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