Síndrome pós-Covid: um novo desafio para o presente

Quase dois anos após o início da pandemia, profissionais de enfermagem desenvolvem estratégias para o tratamento das sequelas que a Covid-19 deixou em muitos pacientes

Dificuldade para respirar, disfunções cognitivas e neurológicas, confusão, dor de cabeça, dor no peito, dificuldade de fala, ansiedade, problemas vasculares e/ou cardíacos, depressão, febre, problemas dermatológicos, perda de cabelos, perda do olfato e do paladar… Essa lista de sintomas tão diferentes entre si pode indicar a síndrome pós-Covid, também chamada de Covid longa – uma patologia já reconhecia pela Organização Mundial de Saúde (OMS).  

Ainda não há números exatos sobre a síndrome, mas um estudo publicado em março de 2021 no site da revista Nature (Post-COVID Syndrome: Incidence, Clinical Spectrum, and Challenges for Primary Healthcare Professionals) mostrou que ela pode afetar mais da metade dos pacientes que se curaram da Covid-19, e que quanto maior a gravidade da doença, maior a probabilidade do desenvolvimento de sua forma longa.

E por que ela é considerada uma síndrome? A professora Monica Taminato, do departamento de Saúde Coletiva da Escola Paulista de Enfermagem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que tem lidado com a pandemia desde o início e participado de estudos sobre a doença, explica: “Ao longo do tempo, entendemos que a Covid-19 não é apenas uma doença respiratória, mas sim uma doença sistêmica, com potencial de desencadear inflamações e alterações vasculares bastante importantes. Por isso, a síndrome pós-Covid também é sistêmica e ela é bastante peculiar de cada indivíduo”.  

A enfermeira e professora Monica Taminato explica que a síndrome pós-Covid é sistêmica e atinge cada indivíduo de forma diferente

Outra pergunta que por enquanto ainda está sem resposta é se a síndrome pós-Covid é completamente curável e, se sim, por quanto tempo os sintomas podem persistir. Por ser uma doença nova, ainda não há conclusões sobre isso. “Um ano e meio de pandemia é um período curto para respostas de longo prazo. Temos casos de persistência de perda de olfato, alterações de memória, alterações pulmonares parecidas com um enfisema e uma persistência de alterações cardíacas que estão muito relacionadas com as alterações vasculares da síndrome pós-Covid. Estamos fazendo agora o acompanhamento desses pacientes”, coloca a professora Monica.

A enfermeira também esclarece que a atuação dos profissionais de enfermagem na assistência à Covid longa é ampla e fundamental. “Nosso papel vai desde a prevenção até a reabilitação desses pacientes. O papel mais importante que temos é ter uma transição de cuidados para os diferentes níveis de assistência (primária, secundária e terciária) e ter um olhar cuidadoso porque a síndrome pós-Covid é bastante heterogênea entre os pacientes. Não podemos desqualificar nenhuma queixa entre os pacientes e devemos ter um olhar atento às queixas mais incapacitantes”.

É exatamente a prevalência dessas queixas incapacitantes que tem inspirado algumas instituições de saúde a abrirem serviços dedicados ao tratamento dos sintomas persistentes pós-Covid.

Planejamento para o cuidado

A enfermeira Juliane Olivares é atualmente gerente de enfermagem e responsável técnica (RT) da unidade Ipiranga do Hospital São Camilo, na capital, um dos hospitais que contam com um serviço exclusivo ao tratamento dos pacientes pós-Covid.

Na instituição, foi montada uma unidade de internação para o acolhimento desses pacientes, como explica a enfermeira: “Nós iniciamos esse trabalho no começo do ano porque entendemos que os pacientes estavam ficando muito mais debilitados, muito mais dependentes da internação”.

Nessa unidade, boa parte do tratamento é voltado à recuperação das sequelas advindas da própria internação na UTI à qual o paciente de Covid-19 é muitas vezes submetido.  “O tratamento do paciente pós-Covid é muito mais trabalhoso do que o do paciente crônico. Quem fica intubado por um longo período acaba apresentando sequelas e muitas debilidades na parte respiratória, na parte motora, na parte mecânica. Temos uma pessoa fragilizada que pode apresentar problemas motores, fragilidade cutânea, problemas renais, parte nutricional afetada, pode desenvolver dependência ventilatória. Ele precisa de reabilitação para as atividades básicas de vida. Muitas vezes ele precisa ser reabilitado numa escovação de dentes, na vestimenta de uma roupa, na utilização do banheiro”. Cabe destacar que esse trabalho de reabilitação é feito por uma equipe multidisciplinar, composta por enfermeiros, técnicos de enfermagem, médicos, nutricionistas, fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais.

Juliane Olivares, do São Camilo, chama a atenção para a necessidade de cuidar das sequelas deixadas pela internação na UTI nos pacientes Covid-19

O Hospital Leforte, na capital, também conta com uma unidade específica para o tratamento pós-Covid desde o início de 2021. A unidade atende a aproximadamente 150 pacientes. A gerente de enfermagem da instituição, Ana Balbo, explica qual é o papel da enfermagem dentro da equipe multidisciplinar do pós-Covid: “São os profissionais de enfermagem que acompanham e fazem todo o follow-up do paciente. Eles fazem a pré-consulta, o acolhimento, acompanham os médicos especialistas, os resultados de exames. O enfermeiro também avalia o paciente para a possibilidade de direcionamento para nutricionista ou fisioterapia. Após a alta, fazemos os acompanhamentos telefônicos de 30, 60 e 150 dias. 

Cada um dos pacientes é acompanhado de perto pelos enfermeiros, que seguem um procedimento de trabalho especialmente desenvolvido para o pós-Covid, como explica Ana: “Eles têm um script de trabalho, em que o enfermeiro deve perguntar ao paciente se perdeu o apetite, se não perdeu, como está a força muscular. O tratamento subsequente depende dessa primeira entrevista, e então o paciente é direcionado a partir dessa consulta inicial”. 

O comprometimento da capacidade respiratória, da capacidade de se locomover e da memória dos pacientes acaba acarretando também grande sofrimento psíquico em muitos pacientes no pós-Covid, sobretudo nos mais jovens, que estão em plena idade produtiva. Por isso, a atuação da enfermagem no pós-Covid também deve ter uma grande atenção com a saúde mental desses pacientes, como conta a enfermeira Fernanda Goulart Carvalho, que também trabalha no Hospital Leforte da Liberdade: “Não converso apenas com o paciente, mas com a família também, inclusive porque muitos deles perderam também entes queridos por causa da pandemia. Como vemos que há muito comprometimento da parte mental, nós acompanhamos de forma muito próxima e cuidadosa”.

A enfermeira Juliane Olivares concorda que trabalhar a parte emocional é um dos desafios da assistência à síndrome pós-Covid: “Quando veio a segunda onda da Covid-19, os pacientes acometidos de forma mais grave foram os jovens. É um paciente que chegou aqui andando, falando e de repente saiu daqui todo dependente de um cuidado. Ele não consegue mais ir ao banheiro, escovar os dentes, deambular, então nosso maior desafio tem sido trabalhar a cabeça desses pacientes e envolvê-los nessa vontade de sair dessa condição”.

Para lidar com essa questão psicológica dos pacientes, a enfermagem do São Camilo desenvolveu estratégias bastante criativas. Uma dessas iniciativas foram o prontuário afetivo e a utilização de fotos de familiares dos pacientes, que ficam à mostra. Além disso, houve uma preocupação com a religião dos pacientes, para que eles pudessem ter contato com pelo menos uma parte da vida extra-hospitalar que deixaram temporariamente para trás. “Além disso, todos os nossos carros beira-leito foram equipados com ferramentas de videochamada para que a gente pudesse rapidamente fazer uma chamada com a família caso o paciente demonstrasse algum tipo de tristeza durante o cuidado”, explica Juliane.

O papel dos técnicos de enfermagem em todo esse trabalho também é de grande importância, pois ele é o profissional mais próximo dos pacientes no dia a dia, como explica o técnico Alexandre Salviano da Silva, do Hospital São Camilo: “A reabilitação do pós-Covid depende também do paciente ter ficado acamado ou não. Nossa função é dar os cuidados de decúbito, hidratação corporal, oferta da alimentação. Quando vemos que pacientes que foram curados voltam ao hospital para nos agradecer, é gratificante”.

Os técnicos de enfermagem, como Alexandre Salviano, são responsáveis pelo acompanhamento 24 horas ao paciente que se recupera da síndrome pós-Covid

Home care e empreendedorismo

Devido à grande diversidade de sintomas e de níveis de complexidade apresentados pelos pacientes que desenvolvem alguma forma de síndrome pós-Covid, há também aqueles que podem ser tratados e acompanhados em casa.

A enfermeira e empreendedora Soraia Rizzo, proprietária de um serviço de home care em estomaterapia, começou a notar um tipo diferente de lesões de pele em pacientes recém-recuperados da Covid-19. Atualmente seu serviço tem prestado assistência específica a esse público: “A gente começou a perceber que os pacientes que vinham do hospital vinham com lesões diferenciadas e pensamos que poderia haver algo de estranho aí”.

Soraia Rizzo uniu o empreendedorismo à assistência aos pacientes que se recuperam do pós-Covid

Soraia explica que essas lesões se diferenciam de uma lesão por pressão comum, em primeiro lugar por sua complexidade. “São lesões que não advêm apenas da pressão. Percebemos que quando o paciente de Covid-19 é colocado em prona, ele desenvolve essa lesão em uma parte do corpo onde não deveria desenvolvê-la, por ele estar de barriga para baixo. A lesão é desenvolvida do lado oposto onde uma lesão por pressão normalmente se desenvolveria. Quando o paciente sai do hospital, nós percebemos que são lesões muito mais profundas e mais complexas do que aquelas que se desenvolvem em pacientes que não são de Covid-19”.

A explicação para isso vem do fato de a Covid-19 comprometer a vascularização do paciente. Com isso, algumas regiões da pele podem ficar mais suscetíveis a lesões. Essa parte da pele com a vascularização comprometida pode lacerar, mesmo que a pressão ou atrito tenha ocorrido em outra parte do corpo.

Além de trazer um novo tipo de paciente, a pandemia mudou a forma como os profissionais que trabalham na equipe de Soraia praticam a assistência. “Agora entramos completamente paramentados na casa do paciente. Tudo o que entra na casa dele é descartável e aquilo que não é descartável, como o nosso carimbo, é higienizado. Também falamos sobre essas questões com a família e com o cuidador, para que eles tenham segurança”, explica ela.   

A gerente de enfermagem Ana Balbo (ao centro) do Hospital Leforte e parte da sua equipe em foto tirada antes da pandemia. O hospital constituiu uma unidade especialmente dedicada à recuperação da síndrome pós-Covid

Como empreendedora, Soraia sabe que a pandemia trouxe uma oportunidade ímpar para que os profissionais de enfermagem sejam mais reconhecidos e valorizados. E isso vale para todos os profissionais, tanto os da assistência intra-hospitalar quanto os que trabalham em consultórios próprios ou serviços de home care: “Vejo que a enfermagem está com a faca e o queijo na mão para se apoderar desse cuidado que é nosso, tanto no hospital quanto no pós-Covid. Refiro-me ao cuidado preventivo e educativo para estimular esse paciente a se autocuidar. Acredito que isso é a base fundamental de todo um trabalho que a enfermagem tem e que é do poder dela”.

As emocionantes cartas de pacientes curados

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A equipe de enfermagem da UTI do Hospital São Camilo do Ipiranga recebeu uma emocionante carta de uma paciente recuperada da Covid-19

Durante a pandemia, os enfermeiros, obstetrizes, técnicos e auxiliares de enfermagem vivenciaram muitas situações inéditas e tiveram que aprender a lidar com o desconhecido. Mesmo em meio a esse período confuso, também surgem situações emocionantes, como alguns casos que surpreenderam a equipe da UTI do Hospital São Camilo do Ipiranga. A coordenadora de enfermagem da unidade, Vanessa de Lanes Morais, conta a história de uma carta recebida pela equipe: “Recentemente, uma paciente já recuperada nos escreveu uma carta de três páginas, nos contando que no período em que ela estava internada e sedada, ela conseguia ouvir tudo o que dizíamos ao redor dela. Nós, profissionais, não sabíamos que ela estava ouvindo. No relato da carta, ela conta que ouviu todas as falas de esperança que os profissionais de enfermagem traziam, muitas vezes segurando nas mãos dela e falando, mesmo com ela sedada, para que ela ficasse calma. Muitas vezes nós vemos o paciente sedado e não sabemos qual é o nível de consciência dele e, quando ele traz relatos de coisas positivas, para nós é muito bom, pois isso nos mostra que estamos no caminho certo”.

Uma outra correspondência que emocionou a equipe veio do exterior. Um brasileiro morador do estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, enviou um cartão agradecendo à equipe da UTI do São Camilo pelos cuidados prestados à sua mãe, que se recuperara da Covid-19. O cartão, que reproduzimos abaixo, diz: “Vocês salvaram a vida da minha mãe (..). Vocês, da saúde. São verdadeiros heróis”.

Ampliando o conhecimento sobre a Covid-19

Os profissionais de enfermagem participam ativamente de pesquisas científicas que buscam entender um pouco mais a Covid-19.

Como professora da Unifesp e especialista em epidemiologia, Mônica Taminato faz parte de alguns estudos desse tipo, além de ser membro do Comitê de Enfrentamento à Covid-19 da universidade.


Um desses estudos acompanha pacientes já vacinados, buscando entender os efeitos de longo prazo da vacinação contra a Covid-19. Nesta imagem, Monica faz coleta de sangue em uma participante do estudo.