O piso da Enfermagem é economicamente viável

Mesmo diante da comprovada viabilidade orçamentária, bilionários da saúde questionam a lei e ameaçam a população com fechamento de leitos e demissões

Por Betânia Santos

Presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen)

A pandemia expôs os salários miseráveis que são pagos a milhares de profissionais de enfermagem que vão para a linha de frente tratar pacientes e salvar vidas. Histórias de enfermeiros e enfermeiras que chegam a receber menos de mil reais líquidos por mês começaram a repercutir em todo o País. Diante de tamanha injustiça, a população foi para as janelas aplaudir a categoria e cobrar reconhecimento a essas pessoas, que se arriscam para cuidar dos outros. Nas redes sociais, um grande movimento tomou forma e a classe política teve que reagir.

Assim, começou o debate sobre a criação de um piso salarial no Congresso Nacional. 

Enfermeiro Henrique Queiroz segura um frasco da Coronavac. Aldeia Aroeira, Barra do Corda.

Em um momento marcado pela polarização política, as discussões em torno do tema e a consequente aprovação do piso nacional da enfermagem marcaram um dos momentos de raro entendimento entre os espectros políticos que coabitam o parlamento brasileiro. No Senado, o projeto foi aprovado por unanimidade e na Câmara: 97% dos parlamentares votaram a favor. Diante de todas as evidências disponíveis e da pressão da sociedade, era impossível a qualquer agente político de bom senso se colocar contra o piso. Com isso, a Lei 14.434/22 foi promulgada e entrou em vigor no último dia 4 de agosto.     

Durante a tramitação no parlamento, o impacto orçamentário do piso nacional da enfermagem foi exaustivamente discutido e a viabilidade econômica do projeto foi comprovada, conforme demonstra o relatório do grupo de trabalho especial que analisou a matéria na Câmara. Em linhas gerais, ficou demonstrado que o investimento anual para erradicar os salários miseráveis da categoria representa somente 2,7% do PIB da saúde, 4% do orçamento do SUS, 2% de acréscimo na massa salarial dos contratantes e 4,8% do faturamento dos planos de saúde em 2020. Importante pontuar que a enfermagem representa aproximadamente 50% da força de trabalho da saúde.

Os empresários da saúde ficaram ainda mais ricos durante a pandemia – com base na exploração máxima da força de trabalho dos seus empregados.

Não obstante, a confederação que representa os bilionários da saúde resolveu entrar com uma ação de inconstitucionalidade no STF, ameaçando a população com o fechamento de leitos e a enfermagem com demissões em massa caso o piso fosse efetivado. Para tanto, se utilizaram da imagem de santas casas e entidades filantrópicas, com o objetivo de causar comoção pública. Lamentavelmente, mesmo diante do posicionamento contrário de todos os órgãos que opinaram no processo (Câmara, Senado, Presidência e AGU, falta o MPF), o ministro-relator Luís Roberto Barroso deferiu uma liminar e suspendeu o piso por 60 dias, um dia antes do pagamento dos novos salários.

A confederação dos donos de hospitais esqueceu-se de citar no processo, contudo, que os empresários da saúde ficaram ainda mais ricos durante a pandemia – com base na exploração máxima da força de trabalho dos seus empregados. Entre os 315 bilionários brasileiros, nove atuam no ramo e oito ficaram multibilionários em plena crise de saúde pública, segundo levantamento da Forbes. O patrimônio do fundador da Rede D’Or saltou de US$ 2 bilhões, em 2020, para US$ 11,3 bilhões, em 2021. A fortuna da fundadora da operadora de planos de saúde Amil foi de US$ 3,5 bilhões em 2020 para US$ 6 bilhões, em 2021. Esses números são reproduzidos em escala por todo o mercado. 

Esqueceram de citar ainda que, segundo o Ipea, o lucro líquido per capita dos planos de saúde mais que dobrou em quatro anos, saltando de R$ 75,70, em 2014, para R$ 185,80, em 2018. A receita das operadoras cresceu de R$ 229,9 bilhões, em 2020, para 239,9 bi, em 2021. Ou seja, o dinheiro existe, trata-se apenas de uma questão de prioridades e de justiça social. Contudo, os salários de profissionais de enfermagem não sofreram sequer a devida correção inflacionária neste período, e a perda do poder de compra dessas famílias as coloca em situação de extrema vulnerabilidade econômica.

Assim como o setor privado, o setor público também tem condições de pagar o piso. Dados do Painel de Informações do Fundo Nacional da Saúde revelam que, atualmente, as 27 unidades federativas possuem um saldo decorrente de repasses que correspondem a R$ 35.152.582.611,77. Esse montante não tem alocação de despesas, ou seja, está disponível nos cofres públicos estaduais. Além disso, a União já se comprometeu a socorrer os municípios pobres, que não têm recursos para arcar com essa nova despesa. Portanto, a situação está equacionada. 

Diante desses números, não é demais indagar o óbvio: é justo que um técnico em enfermagem receba R$ 900 por 176 horas de trabalho por mês? É justo que um enfermeiro, que possui curso superior e exerce funções de extrema responsabilidade técnica, receba R$ 1.212 mensais trabalhando 44 horas por semana? Não, não é justo, mas é isso o que está acontecendo em diversas cidades e estados do país. 

Fonte: Carta Capital