Nova edição da CID pretende incluir velhice como doença. Profissionais de saúde contestam
A Organização Mundial de Saúde (OMS) incluirá a “velhice” na 11ª edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), com o código MG2A, no capítulo 21: sintomas, sinais ou achados clínicos não classificados em outro local. A mudança irá ocorrer a partir de janeiro de 2022.
A CID é desenvolvida pela OMS e conta com vários especialistas trabalhando em sua publicação. Atualmente, estamos na edição CID 10 e, a partir de 1º de janeiro de 2022, entra em vigor a edição 11. Isso não quer dizer que ela começa a valer imediatamente, primeiro será liberada e traduzida para diferentes línguas e depois aplicada no sistema de saúde de cada local, levando aproximadamente dois anos para entrar em vigência. Foi aprovada pela Assembleia Mundial de Saúde, em 2019, e está disponível para consulta, para que as pessoas possam ler e fazer sugestões de alterações.
Velhice será considerada um sinal, sintoma ou achado clínico de qual doença?
Isso tem gerado muita polêmica entre os profissionais ligados ao envelhecimento e, entre os próprios idosos. Para esclarecer quais as implicações que podem ocorrer devido a essa mudança, conversamos com Yeda Duarte, professora associada da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo e Faculdade de Saúde Pública e, ainda, coordenadora do Estudo SABE – Saúde, Bem-estar e Envelhecimento.
“Na CID 11 a velhice foi colocada no código MG2A, tendo como sinônimo: velhice avançada sem psicose, senescênsia sem psicose e debilidade senil. Colocar esses conceitos em um mesmo código é, por si só, um equívoco, pois mistura conceitos como senescência e senilidade, que são absolutamente diferentes. Ambos fazem parte do processo de envelhecimento, mas não são sinônimos. O equívoco está em associar a velhice, que é uma fase da vida, como a infância e adolescência, num código de sinais, sintomas e achados clínicos”, explica Yeda.
De acordo com a professora, a colocação de “velhice” da forma como está na CID gera a compreensão de que a estamos tratando como doença e isso desencadeia várias complicações. Primeiro que automaticamente 34 milhões de brasileiros estarão sendo chamados de doentes, pois esse é o número de idosos no Brasil, segundo dados recentes do IBGE. Outra consequência é que isso vai afetar diretamente as estatísticas de morbidade e mortalidade no país, já que nas Declarações de Óbito (DO) poderá passar a constar apenas que a pessoa idosa morreu de velhice e não de uma causa específica identificada.
“A partir do momento que eu libero um código como este, os óbitos que ocorrerem nesta faixa etária poderão ser equivocadamente colocados, apenas, como velhice, impactando significativamente nas informações sobre mortalidade e no reordenamento das políticas públicas. Perder-se-ia o controle sobre o que está acontecendo. Jamais poderíamos controlar a Covid, por exemplo, pois muitos idosos que morreram da infecção poderiam ter em suas DO apenas “velhice”, ressalta.
Além disso, pode haver implicações negativas para quem deseja fazer um plano de saúde, uma vez que entre as regras existentes constam a presença de doenças prévias. Se a pessoa idosa for fazer um plano de saúde, a doença prévia dela será velhice? Isso modificará a carência para atendimento ou o próprio preço do referido plano de saúde? Pode haver, ainda, implicações jurídicas, visto que o idoso poderá ser classificado como incapaz, apenas por ser idoso, dado que será um “doente”. Isso pode ser erroneamente utilizado e prejudicar a autonomia de muitos idosos, gerando um importante risco para o gerenciamento de sua própria vida.
“Soubemos da mudança na CID 11 na Faculdade de Saúde Pública, durante uma aula de pós-graduação com um professor convidado. Fomos atrás de mais informações e fizemos alguns debates em lives disponíveis no canal do YouTube @oquerolanageronto (O que rola na geronto). Trouxemos para discutir conosco o doutor Alexandre Kalache, que trabalhou por 13 anos na OMS e foi o responsável pela elaboração da política de envelhecimento ativo. Também participou o presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Carlos Alberto Uehara. A partir dessas lives, iniciou-se um movimento de mobilização da sociedade civil e a produção de documentos e petições que possam subsidiar um diálogo com a Organização Mundial de Saúde, solicitando a exclusão ou a colocação desse código em outro capítulo que tire da “velhice” a conotação de doença”, disse.
O movimento cresceu e tomou grandes proporções, países da América Latina, como a Argentina, e da Europa, como Portugal, já se mobilizaram. O próprio Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, já foi contatado e a instituição está sinalizando não ter sido essa a intenção do documento elaborado, mas entendeu o equívoco gerado que necessita ser trabalhado. “A mobilização da sociedade tem muita força. Estamos vendo que isso está trazendo resultados e que muito possivelmente será revisto e modificado. A resposta que tivemos da OMS é que ela não teve a intenção de chamar a velhice de doença e, sim, apenas gerar um código de utilização para o serviço de saúde”, conta Yeda Duarte.