Coletivo formado por enfermeiras promove impacto positivo no bairro da Brasilândia

Desde o início da pandemia, um grupo de profissionais de diversas áreas como saúde, educação, assistência social e órgãos de direito realizam reuniões virtuais mensais para discutir os problemas da Brasilândia, bairro da zona norte de São Paulo. Quarto distrito mais populoso da capital, com mais de 280 mil habitantes, é também um dos mais pobres, apresentando uma população com alto nível de vulnerabilidade social.

A enfermeira Estefania Ventura atua nessa região desde que se formou, em 1997, e é uma das organizadoras do coletivo, que foi chamado de Kilombrasa. O coletivo trabalha com o conceito de aquilombamento, ou seja, a união de pessoas que se fortalecem mutuamente para lutar pela liberdade e por causas coletivas.

Como mulher negra e profissional de enfermagem da área de saúde mental, Estefania explica como o aquilombamento é uma proposta capaz de dialogar ao mesmo tempo com a luta antimanicomial e com movimento negro: “Na saúde mental existe a luta antimanicomial que é a luta pelo cuidado da saúde mental em liberdade e para que as pessoas possam conviver em liberdade apesar de todas as suas diferenças. O movimento negro tem nos dito: ‘Então vocês, profissionais de saúde mental, estão dizendo que há uma luta por liberdade? Vocês estão dizendo então que existe um quilombo, um aquilombamento.’ Pois o quilombo era um espaço onde cabiam todas as diferenças, lá havia negros e brancos abolicionistas e todos que não eram bem-vindos na sociedade da época”.

As enfermeiras Gislaine Moreira e Estefania Ventura, participantes do Coletivo Kilombrasa

A jornalista Daniela Arbex utilizou o termo “holocausto brasileiro” para se referir, em seu livro publicado em 2013, ao manicômio Hospital Colônia de Barbacena. A enfermeira Estefania advoga o uso de termos mais próximos da nossa realidade: “Entendemos que o manicômio não é o holocausto, pois ‘holocausto’ é uma referência europeia. Qual é a dor brasileira? A dor coletiva brasileira são as senzalas, são os navios negreiros. E as nossas senzalas são os manicômios, é a cracolândia, são as prisões, as Fundações Casa, os abrigos infantis. Então essa luta dentro da saúde mental não está restrita aos CAPS, ela é uma ideia que deve ser trabalhada na saúde pública”.

Estefania explica que um dos principais eixos de discussão do coletivo Kilombrasa tem sido a saúde da população negra: “A gente vem discutindo a questão da racialidade e não basta apenas discutir o problema, mas temos que pensar no que deve ser feito. Isso não é apenas uma militância, há uma política de saúde da população negra, é uma legislação, assim como existe uma política de saúde do homem, da mulher e da criança. Apesar disso, a população negra é negligenciada, porque o racismo estrutural diz que não precisa ter uma política de saúde integral para a população negra porque não existe racismo no Brasil”, diz.

Uma das formas de fomentar o cumprimento da Política de Saúde Integral da População Negra, na opinião dela, seria o colhimento consistente do quesito raça/cor pelos profissionais que fazem a assistência à saúde de determinada população “O quesito raça/cor é dado pelo IBGE e todos os formulários de saúde devem ter esse quesito. Como profissionais de saúde, temos que saber colher esse dado, como preencher, então a primeira questão que estamos colocando na conversa com os trabalhadores é esse quesito raça/cor. Colocar o início da política de saúde população negra em prática é fazer a coleta desse quesito. Como a enfermagem é mais de 60% do total dos profissionais nacionais de saúde, se ela compreender a importância dessa política, todo o restante da instituição também compreende”, explica a profissional.

Carolina Albuquerque, Letícia Ribeiro Martins de Matos, Estefania Ventura e Gislaine Moreira

A enfermeira Gislaine Moreira atua na atenção básica na região da Brasilândia e também faz parte do coletivo Kilombrasa. Ela explica que consegue identificar diferenças na saúde da população dentro do próprio território. Sua unidade conta com nove equipes da Estratégia Saúde da Família. A profissional explica o quanto as questões de saúde variam de acordo com o perfil racial da população: “Nós percebemos que são universos diferentes e naquele território onde temos um número maior de negros, temos mais adoecimentos, eles morrem mais e até produzir saúde é mais difícil porque essa pessoa não se sente adoecida”.

Gislaine vislumbra a necessidade de uma construção coletiva envolvendo toda a rede de atenção à saúde para a construção de uma assistência mais ampla à população negra: “É um trabalho que precisa ser construído, não está pronto nem está dado. Cada local tem sua particularidade. Precisamos aprender a construir a política de saúde da população negra assim como aprendemos a construir a política de saúde da mulher”.

A participação dos profissionais da atenção primária é fundamental nessa construção, pois ela é a porta de entrada para o sistema de saúde. “Esse trabalho determina o quanto o paciente ficará agravado, determinará toda a assistência posterior”, afirma a profissional, que completa: “No momento que passamos a discutir a saúde da população negra, isso já um avanço. Começamos a entender que existe um racismo estrutural e que precisaremos pensar em ações para combater ou pelo menos minimizar esse racismo”.

Desconstrução pessoal como ação antirracista

Carolina Albuquerque é enfermeira da região da Brasilândia, especializada em saúde da família, saúde coletiva e gestão do SUS. A participação no coletivo a auxiliou, em primeiro lugar, a se entender: “Me ajudou a me encontrar nessa questão de identidade. Não sou branca nem negra e também não tive contato com minha ancestralidade indígena. Acho muito importante estarmos aqui. Vivemos 500 anos de exploração, nosso país foi constituído a partir da exploração, a partir da desigualdade social”, afirma.

As enfermeiras Letícia Ribeiro Martins de Matos e Carolina Albuquerque

Com formação também em psicanálise, ela toca num assunto de grande importância e que muitas vezes é deixado de lado: o racismo precisa ser desconstruído em primeiro lugar dentro do próprio indivíduo, seja ele profissional de saúde ou não. “Precisa de muita desconstrução de colonização, porque é uma questão estrutural. É preciso uma vigilância constante para a gente se desconstruir e apoiar os colegas e demais trabalhadores que também estão nessa desconstrução”.

Dentro desse contexto de desconstrução, a enfermagem precisa se conscientizar de sua função política no sistema saúde, que passa pela garantia de acesso igualitário a esse sistema a toda a população. “A questão do combate ao racismo é uma resposta a uma população, oferecendo a ela políticas de garantias de saúde. Nós, trabalhadores do SUS, somos representantes políticos de garantias de acesso à saúde, então eu ser uma enfermeira com uma assistência antirracista não é uma mera decisão: é um posicionamento ético e político, é uma obrigação não só minha, mas de todos os profissionais em formação”, elabora Carolina.

A enfermeira Letícia Ribeiro Martins de Matos trabalha desde 2012 no CAPS Álcool e Drogas na região da Brasilândia. Ela também acredita na transformação e conscientização do próprio profissional de saúde como fato precursor da transformação da assistência. Ela compartilha uma ação realizada entre os profissionais no seu ambiente de trabalho: “Fizemos uma oficina entre nós. Apareceu a questão de Dandara ter se suicidado para não voltar a ser escrava, falamos de Luís Gama e de André Rebouças. Isso propiciou que os profissionais se identificassem com essa luta e percebessem que vivemos em país racista”.

Para ela, é fundamental que o profissional de saúde se identifique com a questão da racialidade, pois isso certamente impactará na assistência prestada. “A partir do momento em que você se identifica como negro e se coloca nesse lugar e reconhece todo esse sofrimento ancestral, você tem a obrigação de fazer alguma coisa”.