A melhor idade com os melhores cuidados

Trabalhar com idosos vai além de todo conhecimento técnico, pois exige também um olhar amplo e humanizado sobre os pacientes na senescência

A rotina de trabalho de um profissional de enfermagem em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI) é diretamente relacionado à intensidade do vínculo que o profissional cria com os pacientes, devido ao longo período de convivência.

Casal de idosos no Residencial Recanto Feliz, em Caieiras: cuidados diários garantidos pela equipe de enfermagem

“Nosso cuidado, pela sua natureza, precisa ser bastante individualizado. Há um monitoramento para cada idoso, com uma ficha onde avaliamos tudo: panturrilha, força palmar, margem, fazemos testes de mobilidade. Partimos de um princípio muito difícil, que é: como invadir a privacidade de um idoso com demência, que não entende a situação de um banho, por exemplo?”.

Quem faz essa reflexão é a enfermeira Camila Elias de Araújo, que atua há 18 anos em ILPIs. Especializada em gerontologia, atualmente ela comanda o serviço de enfermagem da Residência Primaveras, em São Bernardo do Campo, que conta com 47 moradores. A maioria deles tem mais de 85 anos de idade e 95% têm alguma síndrome demencial.

A enfermeira Camila Elias de Araújo trabalha há 18 anos em ILPIs e atualmente coordena a equipe da Residência Primaveras, em São Bernardo do Campo

Camila esclarece um ponto que ainda é bastante incompreendido: a institucionalização de um idoso em uma ILPI geralmente se deve à incapacidade da família em cuidar desse idoso com demência ou Alzheimer, sendo fruto mais da falta de outra opção para a família do que de uma escolha voluntária. “A família começa a perder essa condição de dar o suporte. Por mais que tenham um cuidador no lar, esse idoso não recebe o mesmo estímulo que receberia aqui dentro. Toda a equipe de uma ILPI é especializada em gerontologia: os terapeutas, psicólogos, arte-terapeutas, educadores físicos, nutricionistas, equipe de enfermagem e paliativistas. Temos todo esse olhar para que a pessoa vá seguindo sua vida até o fim com respeito e valorização”.

Atualmente, o trabalho da equipe de enfermagem dentro de uma Instituição de Longa Permanência é regulamentado pela Resolução Cofen nº 620/2019. Ela determina, entre outras coisas, a importância da elaboração da SAE e de relatórios sistemáticos, as atribuições e o papel do enfermeiro Responsável Técnico (RT) nesses serviços e a necessidade de se cumprir o Estatuto do Idoso e as determinações da Vigilância Sanitária dentro do cuidado prestado.

Apesar da Resolução Cofen nº 690/2019 detalhar o trabalho da equipe de enfermagem, ainda existem alguns equívocos na legislação federal que regulamenta essa área. A fiscal do Coren-SP e gestora técnica de área, Milena Carla Silva Moreno Villalva, possui grande experiência de fiscalização em ILPIs. Ela explica que falta clareza na legislação, o que dificulta inclusive uma inserção mais plena do profissional de enfermagem nesse tipo de assistência. “O principal problema que temos é que a legislação sobre as ILPIs não caracteriza o atendimento que elas prestam como um atendimento à saúde”.

Equipe de profissionais do Residencial Recanto Feliz e enfermeira Mirianlene Pereira (à direita) com sua equipe

Com isso, algumas instituições acabam não contratando profissionais de enfermagem para prestar cuidados, restringindo-se ao cuidado prestado exclusivamente por cuidadores.

Milena coloca que a forma como a instituição está registrada legalmente pode fazer toda a diferença: “Se no cadastro consta como clínica geriátrica, normalmente vemos uma assistência de saúde completa, com médicos, enfermagem e os demais profissionais. Se a instituição está registrada como instituição social ou de moradia, ela não se caracteriza legalmente como instituição de saúde, então não há como cobrar a presença da enfermagem e dos outros profissionais da equipe multidisciplinar”.

Rotina de trabalho

A enfermeira Mirianlene Pereira também atua nessa área. Ela é sócia de uma ILPI com o marido, o técnico de enfermagem Rodrigo Siqueira do Carmo. Juntos, eles fazem a gestão do Residencial Recanto Feliz, em Caieiras, que atualmente é a casa de 28 idosos.

Mirianlene, que também tem experiência como enfermeira na área hospitalar, destaca que o vínculo formado com o paciente em uma ILPI é diferente: “Eu digo que é uma lição de vida, é algo muito diferenciado vivenciar a enfermagem hospitalar e a enfermagem dentro de uma instituição de longa permanência onde convivemos com esse idoso por 24 horas, ele acaba fazendo parte da nossa família”, afirma.

A auxiliar de enfermagem Andressa Cristina Maciel dos Santos mede os sinais vitais de uma moradora do Residencial Recanto Feliz: profissionais de nível médio são fundamentais em uma ILPI

A rotina de cuidados de enfermagem em uma ILPI inclui banhos, medicação nos horários indicados conforme prescrição médica, alimentação, troca de fraldas geriátricas e avaliações de cognição e consciência, coordenação motora e força física. Alguns profissionais também auxiliam em atividades recreativas e externas, acompanhando outros membros da equipe de saúde como terapeutas ocupacionais, arte-terapeutas e educadores físicos.

Para o idoso com demência ou Alzheimer, a manutenção de uma rotina diária é de grande importância, sobretudo quando essa rotina é feita em companhia de outros. Isso proporciona estímulo cognitivo, necessário para retardar a evolução da doença.

Mirianlene ressalta a importância das atividades de rotina para os idosos sob seus cuidados: “A gente percebe que conseguimos trazer autonomia para o paciente que deambula. Permitimos que tome banho sozinho quando ele é capaz, é importante que seja estimulado a continuar fazendo atividades para que ele consiga se desenvolver”.

A participação de profissionais de nível médio, como a auxiliar de enfermagem Andressa Cristina Maciel dos Santos, é muito importante nessa rotina. Andressa, que trabalha no Residencial Recanto Feliz, se formou em 2015 como auxiliar e sempre trabalhou em ILPIs: “As pessoas têm bastante preconceito com as instituições, costumam valorizar mais o hospital, mas a área de instituições de longa permanência é bem ampla. No meu cotidiano dou medicação, verifico sinais vitais, faço curativos e mantenho um olhar em relação a tudo, sempre mantendo a atenção”, coloca.

Camila Elias de Araújo ao falar do importante papel dos técnicos e auxiliares de enfermagem no trabalho em ILPIs, traz à discussão um assunto muito importante para a segurança do paciente: o cuidado especializado feito por profissionais de enfermagem e não por cuidadores. “Trabalhamos sempre para termos técnicos de enfermagem em nosso serviço. Eles cuidam de toda parte de sondas e medicamentos. Os cuidadores não fazem isso, ficando apenas com a parte de banho e alimentação, com o suporte do auxiliar de enfermagem em alguns casos. Medicamentos, inclusive os via oral, também são ministrados por técnicos de enfermagem, apesar desse trabalho poder ser feito por cuidadores segundo a legislação. Toda a parte de curativos também é feita exclusivamente pela enfermagem”.

A gestora técnica de área e fiscal do Coren-SP Milena Villalva explica que a área de ILPIs ainda precisa de uma legislação mais clara em alguns pontos

As ILPIs visitadas para a elaboração dessa reportagem executam um trabalho exemplar no tocante à presença da equipe de enfermagem, mas a fiscal Milena Villalva lista alguns problemas que costumam ser identificados em outras instituições pela fiscalização do Coren-SP: “Há muito a questão da ausência de enfermeiros supervisionando o trabalho de técnicos e auxiliares em algumas instituições. Muitos serviços não têm enfermeiro registrado como Responsável Técnico. Também notamos muito a falta de registro de enfermagem adequado. Às vezes os idosos começam a ter dependência maior de cuidados de enfermagem, mas a casa não está preparada para prestar esse cuidado. O idoso pode estar acamado e precisando de curativos, mudança de decúbito ou aspiração das vias aéreas e clínica não tem profissional capacitado a prestar esses cuidados que seriam da enfermagem”.

Atividades terapêuticas

Além da participação nessa rotina diária, a enfermagem idealmente também se envolve bastante nas atividades especiais com caráter terapêutico. 

A enfermeira Camila detalha uma dessas atividades das quais participou: “Uma atividade que para mim teve um impacto enorme foi o desenvolvimento de uma rádio interna. Foi desenvolvida por um psicólogo e se chamava Rádio CCVA. Cada idoso construiu um programa baseado em sua história de vida, então a preocupação deles durante a semana era preparar seu momento na rádio. Isso trabalhou bastante a integração entre eles”.

Outro tipo de atividade comum são os passeios, como idas ao teatro por exemplo. “A pessoa com uma síndrome demencial pode ser inserida totalmente na sociedade. Levamos para verem uma peça de teatro, com todos muito bem arrumados. Quando entramos no shopping onde o teatro ficava, as pessoas olharam assustadas para aquele coletivo de idosos, mas a ida dos idosos ao teatro deveria ser normal, precisamos compreender a velhice como uma fase da vida. Tentamos escrever o último capítulo da vida desses idosos com dignidade e respeito por quem eles são e também pela história deles”, afirma Camila.

Humanização e respeito mútuo

Camila explica melhor a importância de a aproximação com o paciente ser feita com sensibilidade: “Uma das queixas das famílias é que muitas vezes não conseguem dar o banho em casa e que o idoso nessa situação às vezes fica irritado, impaciente, por exemplo. O toque de um banho às vezes é uma agressão para a pessoa que não está entendendo o que você vai fazer. Então tentamos buscar formas de prestar esse cuidado, é um trabalho de formiguinha que se desenvolve conforme vamos conhecendo aquele idoso”.

Para Mirianlene, a palavra-chave no trato com os idosos é confiança. “É um aprendizado diário. Sempre falo que precisamos mostrar para eles confiança. Uma vez que confiam em nós, conseguimos lidar, conversar, tirar deles o que precisam para terem uma assistência adequada. Quando trabalhamos com amor e temos cuidado, automaticamente os pacientes sabem que estamos ali para cuidar, para fazer o melhor para eles e então a cada dia o profissional também tem um novo aprendizado”.

Tanto Camila quanto Mirianlene implantaram a sistematização da assistência e o registro adequado das ações de enfermagem nos serviços que coordenam.

Mirianlene explica a importância da sistematização para o serviço que presta: “Por meio da SAE conseguimos trazer para esse idoso um trabalho realmente humanizado, pois permite que conservemos a qualidade da assistência. A gente consegue qualificar o que o paciente realmente precisa. Utilizamos um sistema de software que é o nosso prontuário eletrônico, onde cada profissional tem sua senha e consegue fazer ali toda a anotação e a evolução da assistência”.

Em sua instituição, Camila mantém uma ficha com o histórico de cada idoso que chega. “Pedimos para a família e o idoso contarem a sua história, e mantemos essa ficha que utilizamos em nosso cuidado, que envolve resgatar a memória desse paciente. Outra estratégia que utilizamos é a manutenção de fotografias deles junto aos medicamentos, para minimizarmos possíveis erros de medicação”. Todas as ações de enfermagem também são anotadas e a evolução dos pacientes acompanhada atenciosamente.  

Esse cuidado ao idoso, quando feito com dedicação e profissionalismo, pode ser bastante recompensador para os profissionais envolvidos. Mirianlene, que deixou de trabalhar na área hospitalar e de dar aula para dedicar-se totalmente à ILPI, resume seu sentimento: “É um amor muito grande que temos por esses pacientes e isso é recíproco. Vemos que o olhar que eles têm por nós é um olhar diferenciado, é um olhar de carinho e de gratidão pelo nosso trabalho com eles”.

Fonte: EnfermagemRevista, edição 31

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