Entrevista: Berenice Kikuchi fala sobre anemia falciforme

Correm pelo sangue de cerca de 30 mil brasileiros glóbulos vermelhos em forma de foice, que causam fortes crises de dor em diversas partes do corpo, como ossos e articulações, icterícia, edemas nas mãos e nos pés de crianças, feridas, retardo do crescimento e da maturação sexual e infecções.


 A enfermeira Berenice Kikuchi fundou a Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo (Aafesp) e rompeu diversas barreiras

Esses são alguns sintomas da anemia falciforme, doença genética que afeta um a cada 380 afrodescendentes e que ainda é marginalizada pela sociedade, autoridades e pelo próprio sistema de saúde. Desbravadora dos caminhos para reconhecimento e tratamento adequado da doença, a enfermeira Berenice Kikuchi fundou a Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo (Aafesp) e rompeu barreiras, como a consolidação do Combate ao Racismo como 9º Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM) no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a inclusão do diagnóstico de anemia falciforme em recém-nascidos, por meio do teste do pezinho, que rendeu um prê- mio à associação no mesmo programa.

Em 2015, a Aafesp ganhou o prêmio Caixa Socioambiental, com apoio financeiro para ampliar seu projeto no Mato Grosso do Sul, durante 12 meses. Mesmo com tantos avanços, a luta de Berenice pela inclusão social das pessoas com anemia falciforme ainda tem muitos desafios a serem vencidos.

Enfermagem Revista: Como iniciou a sua atuação na luta pelo reconhecimento e abordagem adequada da anemia falciforme?

Berenice Kikuchi: Conheci, em 1993, uma criança com dez anos recém-diagnosticada com anemia falciforme. Essa família me foi indicada em decorrência da minha militância com a saúde da população negra, no distrito de saúde de Guaianazes, na zona leste de São Paulo. As dificuldades da mãe em encontrar serviço especializado a partir deste diagnóstico tardio colocaram em xeque o conhecimento dos profissionais de saúde diante da magnitude clínica, social e psicológica da enfermidade.

ER: Como você avalia a compreensão da doença por parte do Estado e da sociedade?

BK: Nas duas últimas décadas os movimentos representativos de pessoas com a doença expandiram-se para todo o território nacional, visando a inclusão das pessoas e da anemia falciforme no Sistema Único de Saúde (SUS). Essa intensa mobilização resultou em legislações. A Aafesp foi pioneira nacional na conquista, em 1997, de uma legislação específica para a doença, a qual tornou-se norteadora de legislações similares em vários municípios e Estados. Um avanço importante foi a Portaria nº 822/2001, que incluiu o diagnóstico precoce da anemia falciforme na triagem neonatal em 12 Estados da Federação. Este processo de inclusão dos outros Estados foi concluído em 2014. As pessoas com a doença, que estão organizadas em uma associação, aprenderam a reconhecer e reagir à discriminação e ao racismo. Mas a discriminação por cor e classe social faz parte da cultura brasileira, e manifesta-se na forma de tratar e interagir com a população negra nas instituições de saúde. Como resultado, os piores indicadores de saúde no SUS colocam a população negra em primeiro lugar. Para reverter esse quadro, é importante reconhecer o racismo institucional e intervir para combatê-lo.

ER: Qual foi o papel da Aafesp na indicação do 9º Objetivo do Desenvolvimento do Milênio (ODM), que prevê o combate ao racismo?

BK: A Aafesp aliou em suas práticas as duas grandes conferências do milênio da ONU. A de 2000, que resultou nos oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, e a de 2001, que foi a de combate ao racismo e todas as formas de intolerância. Com esse enfoque, fizemos um vídeo que batizamos de “Objetivos do milênio sem o racismo”. A partir dele passamos a divulgar os ODM, por meio de conferências e palestras em escolas nas comunidades das periferias, para que o racismo entrasse nos objetivos de desenvolvimento na edição de 2015 como estruturante e transversal. Ter essa proposta contemplada chama a atenção para uma situação polêmica no Brasil, que é admitir que o racismo institucional atua de forma sinergética na população negra, determinando formas desvantajosas de nascer, viver e morrer, além de trazer para o debate político a anemia falciforme, como uma enfermidade que afeta de forma majoritária os descendentes de africanos no Brasil e no mundo. Avançamos, mas ainda temos uma mortalidade alta, que coloca em xeque o conhecimento dos profissionais de saúde para reverter situações de urgência emergência.

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