Elias Knobel: “A Enfermagem está no topo da pirâmide da saúde”

 

Um dos pioneiros na implantação das Unidades de Terapia Intensiva no Brasil, o médico cardiologista Elias Knobel rompe com os paradigmas e rivalidades que permeiam a relação entre médicos e a enfermagem ao demonstrar grande admiração pelos profissionais da categoria e pela sua atuação na assistência direta e constante ao paciente.

 Formado pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), fundou a UTI do Hospital Israelita Albert Einstein, permanecendo seu diretor até 2004. Foi premiado com o título de membro honorário da European Society of Intensive Care Medicine e é um dos sócios fundadores da Sociedade Paulista de Terapia Intensiva (SOPATI) e da Associação de Medicina Brasileira. Tem inúmeros artigos publicados no Brasil e no exterior, sendo autor de 19 livros, entre eles “Terapia Intensiva – Enfermagem”.

Em entrevista para a Enfermagem Revista, ele relata o papel fundamental da enfermagem na evolução do cuidado a pacientes graves e os desafios apresentados nos serviços de saúde para a valorização e satisfação dos profissionais.

Enfermagem Revista: O senhor conduziu a implantação de um serviço pioneiro na área da saúde: a Unidade de Terapia Intensiva. Como foi a experiência à frente desse projeto e a participação da enfermagem?

 Elias Knobel: Eu montei a UTI do Einstein em 18 de maio de 1972 e vivi a história da criação desse serviço no Brasil. Quando eu era residente, não existia unidade de terapia intensiva e uma das primeiras foi implantada aqui em São Paulo. Naquela época nós atendíamos os pacientes graves ou no pronto socorro ou internados nas áreas do hospital e, quando havia uma complicação do paciente, tínhamos que juntar pessoas e montar uma equipe em algum espaço, seja no mesmo andar, na recuperação ou em outro andar do prédio. Percebemos, com o tempo, que seria melhor unir todos esses pacientes num só lugar e foi assim que surgiu a UTI. Neste atendimento específico ao paciente era obrigatória a presença de um ou mais profissionais de enfermagem. Não adiantava ter só medico e não existia fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo, como nos dias de hoje. Existia o auxiliar de enfermagem e o técnico enfermeiro, que eram essenciais no grupo.

ER: Como se consolidou essa percepção sobre a importância da enfermagem no atendimento a pacientes graves?

 EK: Essa concepção em relação ao cuidado de pacientes graves é histórica, da guerra da Criméia, quando Florence Nightingale se destacou. Desde então vem se caracterizando a formação de uma equipe, um grupo. Eu costumo a dizer o seguinte: pode haver algum lugar em que não tem médico. Muitas UTIs nos EUA não têm médico presente. Esse profissional está no ambiente hospitalar e vai à UTI para dar assistência. Ele não fica, por exemplo, o tempo todo no sétimo andar, nono andar, décimo andar de qualquer hospital. Quem está sempre ao lado do paciente é a enfermagem. Sou eternamente grato a esses profissionais porque eu não teria conseguido fazer tudo que eu fiz sem eles. É por isso que a enfermagem está no topo da pirâmide da saúde.

ER: O senhor aborda a assistência em saúde do ponto de vista da humanização. Qual é o papel da enfermagem nesse contexto?

EK: Existe a instituição de saúde e existe o paciente. Para que se tenha uma medicina de alto nível, eficiente e humanizada é preciso que haja um elo entre os dois e esse elo é o profissional de enfermagem. Não adianta ter diplomas afixados nas paredes! Os diplomas, certificados, Joint Comission, ONU, etc… são bonitos na parede, mas são eficientes quando você os traz na beira do leito. E quem faz isso são os profissionais de saúde, com destaque para a enfermagem.

ER: Embora sejam essenciais na estruturação e manutenção dos serviços de saúde, os profissionais de enfermagem encontram dificuldades para a conquista do devido reconhecimento. Como o senhor avalia esse paradoxo?

EK: O profissional de enfermagem é tão necessário, porém não tem a devida valorização. De uma forma geral, os profissionais de saúde estão se tornando objetos descartáveis, ficando cada vez mais difícil seu envolvimento com as instituições de saúde, que se tornaram empresas. Eles têm que seguir protocolos, preencher planilhas. As instituições de saúde se transformaram em empresas que reverenciam indicadores e têm uma adoração pelas planilhas. Elas seguem apenas indicadores como resultado. Ah, e se tiver negativo? Negativo não sustenta. Então as instituições privadas buscam “produtos que alimentam a planilha”. Já as instituições públicas, nunca tiveram uma gestão adequada. Sempre gastaram mais do que recebiam e nunca receberam o que tinham que receber, então entraram nessa penúria. Porém, elas almejam que o profissional se dedique, vista a camisa, mas a gente percebe que em muitos lugares você não tem a reciprocidade. O profissional de saúde, de enfermagem, vai valorizar a instituição não só pelo salário, mas quando ele se sentir um profissional que faz parte do processo e que é reconhecido.

                                                               

ER: Esse desafio para a conquista do reconhecimento reflete também na valorização, condições de trabalho e de remuneração. Como o senhor avalia esta questão?

EK: Eu nunca me conformei com o seguinte: como que o profissional de enfermagem começa a trabalhar 12 por 36 horas, virando fim de semana e trabalha um ano, dois anos, cinco anos, dez anos nesse ritmo? Esse profissional não tem a vida dele exclusivamente na saúde. Ele não pode colocar a vida dele na atividade, ele tem que colocar a atividade na vida. É uma pessoa! Se tomarmos como exemplo as mulheres, que são maioria, temos que considerar que se ela casa, tem filho e ainda se dedica à assistência aos sábados, domingos. Até quando? Não se tem um plano de carreira à medida que esse profissional vai evoluindo, tendo, por exemplo, o fim de semana de folga ? Hoje, a área de Recursos Humanos tem como base empresas como bancos e supermercados e eles tentam adaptar esse sistema ao hospital. Eles tentam transformar o funcionário do hospital como se fosse no sistema bancário, só que esquece que quem está no sistema bancário trabalha com dinheiro e, aqui, trabalha-se com vidas. Eu acho que cada um deveria ser reconhecido pela sua capacidade, pelas suas virtudes.

 ER: Como a enfermagem está ocupando os espaços de liderança?

EK: Conheci enfermeiros sensacionais, que ocupavam muito bem as posições de liderança, porém eles não são retidos nas instituições de saúde, que não estão dispostas a pagar um salário compatível. Esses profissionais acabam indo para a indústria ou viram gestores, assumindo trabalhos burocráticos, que são mais valorizados. Outra questão é que vejo que falta o empoderamento da enfermagem. Ela acaba aprendendo a obedecer ordens médicas. Eles são vítimas dessa estrutura em que se um profissional de enfermagem não cumpre a ordem e há reclamação na diretoria, eles vão dar a razão pro médico. A enfermagem terá autonomia e personalidade profissional quando se apropriar daquilo que está fazendo.

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